Meu pai foi um dos nove filhos de
Silvério e Thomires. Passou seus primeiros anos em uma fazenda, longe da vida
urbana e de suas convenções. Amava o cheiro da terra nua e a liberdade que a
vida de campo lhe proporcionava. Veio para Cuiabá para terminar os estudos e
morou em São Paulo para fazer um curso na Polícia Militar daquele estado. Quando
retornou a Mato Grosso tornou-se um sapador e ajudou a abrir estradas num
estado ainda unificado.
Morou em acampamentos
e, nessas incursões, acabou sendo acometido por malária em duas ocasiões. Casou e, como mamãe achava que uma esposa não
deveria abandonar o marido, foi morar com ele nos acampamentos. Mal consigo
imaginar a pele muito alva de mamãe sob o sol escaldante de uma tenda de lona.
Ainda nessa época ela ficou grávida pela primeira vez, mas, sentiu-se mal e não
conseguiram obter ajuda a tempo, o que a levou a sofrer um aborto espontâneo.
Nem assim deixou de acompanhar o esposo.
Papai tinha orgulho da sua raiz
pantaneira e amou a sua terra natal como poucos. Quando deixei Cuiabá para estudar e vinha passar as
férias, ele mal esperava eu desembarcar para mostrar-me as novidades da terra: “esta
rua foi asfaltada, construíram um prédio ali”, dizia orgulhoso, e eu, meio que enfadada,
tinha que mostrar a minha admiração enquanto rodávamos de carro.
Ao contrário dele, eu era uma
pessoa extremamente urbana. Reclamava de poeira, calor e mosquito nas raras
vezes em que me aventurava a visitar alguma área rural. De papai, herdei a fisionomia e o jeito brincalhão de lidar com o
dia-a-dia. “Tem que tocar a vida para a frente, em qualquer situação”, foi-me o
seu grande ensinamento e que amparou-me em muitas situações adversas.
Minha irmã, Ligia Maria, e eu crescemos
frequentando os principais eventos sociais da capital. Numa cidade ainda
provinciana, onde todo o círculo social se conhecia, procurávamos estar
vestidas de acordo com os padrões.
Papai não gostava de ir a médicos
e, para qualquer doença ele dizia: “deve ser intestino, é só tomar leite de
magnésia!”. Parece piada, mas não é.
Imagino vovó Thomires lidando com nove crianças numa fazenda: era leite
de magnésia para tudo!
Sofrendo com enormes joanetes nos
pés, papai tinha dificuldade em usar sapatos novos. Nunca procurou um médico
para tratar do problema. Ele tinha um par de sapatos do tipo mocassim, bastante
surrados, que ele não tirava dos pés. Usava-os para ir ao mercado, restaurantes,
enfim, onde quer que fosse. Uma vez, quando viemos passar o Natal em Cuiabá, a
minha irmã e eu tivemos a mesma ideia e papai ganhou sapatos caros das filhas.
Acho que ele não gostou muito dos presentes. Lembro-me que, quando fomos sair
para um restaurante eu pedi: “pai, por favor, use um dos sapatos novos”. Ele
ficou bem chateado, calçou os sapatos, mas retrucou: “quando eu morrer quero
ser enterrado sem sapatos, não aguento essa história de andar chique que vocês
inventam”!
Nunca me esqueci disso e, quando
ele partiu para a última morada, estava de terno, com meias, mas, sem sapatos. Muitos anos depois, eu me lembrei do seu
último desejo.
Os anos passaram e os fios de
cabelos brancos começaram a surgir em minha cabeça. A maturidade levou-me a,
cada vez mais, ignorar as convenções. Num passado recente, houve um evento em
que fui uma das homenageadas. Sei que a solenidade solicitava um traje de cor preta,
ou, neutra, mas, eu estava sentindo-me exultante, radiante como a luz solar.
Escolhi um vestido cuja cor lembrasse o sol para representar a minha felicidade.
Pensei comigo: “não estou nem aí para essa história de convenção”. E finalmente
entendi o meu pai com a história dos sapatos.
Ele havia cumprido bem a sua missão e não tinha a necessidade alguma de
seguir convenções sociais. Perdoe-me, papai, eu errei.
PS: Para Gonçalo Ribeiro da Silva,
meu muito amado pai.
Telma Cenira Couto da Silva, cuiabana e doutora em Astronomia
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